quarta-feira, 27 de abril de 2011

Em defesa do “Clássico”: uma crítica ao ensino da Diplomática nos cursos de Arquivologia do Brasil

A origem do termo clássico - utilizado neste contexto para definir textos fundamentais para a leitura e compreensão da Diplomática e Arquivística – está ligada à característica de um autor pelas suas qualidades literárias que faz com que seu trabalho possa ser considerado um o modelo para aqueles que estudam o mesmo ofício.
Neste sentido, um autor clássico da Diplomática é D. Jean Mabillon, com a obra De re Diplomática (1681), que formou as bases da disciplina, permitindo um estudo mais seguro dos diplomas da Idade Média, e promovendo uma formação crítica e analítica daqueles que os estudavam. Seu trabalho forneceu as bases para as críticas de Hardouin, Germon e Lenglet – conhecidos notadamente pelos beneditinos como ennemis des anciennes archives - e que depois foram rebatidas por Toustain e Tassin no também clássico Nouveau Traitè de Diplomatique (1750-1765).
O novo tratado buscou solidificar a Diplomática proposta pelo colega Mabillon e demonstrar aos arquivos sua consistência e importância. Para tanto, os autores esclarecem os princípios fundamentais sobre os quais a disciplina está apoiada, dedicando longos capítulos sobre os arquivos e seus diplomas, definindo com muito escrúpulo os vários tipos de instrumentos, monumentos, cartas, bulas, documentos, etc., que compunham os arquivos públicos, privados e eclesiásticos, anteriores e contemporâneos ao Tratado. O leitor é desafiado a ler todos os seis tomos da obra, cada um contendo pelo menos 700 páginas, uma vez que, os autores tratam de um assunto específico em cada tomo, chegando a dedicar um tomo (o segundo) somente aos elementos extrínsecos dos diplomas, subdividindo- os em cinco: la matiére sur laquelle ; les instrumens e l’encre, avec lesquels les diplomes sont écrits ; la figure des lettres, qui y sont employées; les sceaux, qu’on y met en usage » (TOUSTAIN; TASSIN, 1750-1765, p. 441).
            Assim como em qualquer tratado, as definições estão implícitas, e não são colocadas de forma simples e direta como nos manuais, salvo algumas, como, por exemplo, a de Diplomática:
« La Diplomatique est la science ou l’art de juget fainement des anciens Titres. Elle a pour objet les chartes, dont elle fixe l’âge, par une connoissance exacte de la nature des actes, des écritures, e des divers usages propres à chaque siècle, e à chaque nation. Sa fin est de faire servir toutes ces formalités, au jugement favorable ou desavantageux, qu’il faut porter des diplomes » (TOUSTAIN; TASSIN, 1750-1765, p. 441).
Apesar de ser uma obra dedicada à Diplomática e ao estudo dos diplomas, deveria ser introduzida – pelo menos alguns capítulos – na bibliografia básica de qualquer curso de Arquivologia, uma vez que, nos fornece uma raccolta dos principais depósitos públicos de arquivos, demonstrando a variedade e a importancia destes para os Judeus, Egípcios, Babilônios, Persas, Gregos e Romanos, que consideravam esses lugares sagrados e dignos de fornecer fé pública aos documentos ali depositados.
Ainda, o tratado demonstra a importância dos arquivos eclesiásticos, que mantinham os diplomas com muito mais critérios e organização, e que foram privados de serem queimados ou destruídos durante as guerras, como acontecia com os depósitos públicos.
Outra obra importante é Istoria Diplomatica che serve d’introduzione all’arte critica in tal materia (1727) do italiano Scipione Maffei, notável estudioso dos diplomas antigos, principalmente daqueles escritos em papiro do Egito, e que escreveu um tratado basicamente sobre a origem dos diplomas desde o século V. A importância dessa leitura recai novamente sobre o papel desempenhado pelos Arquivos desde sempre, e que, por essa razão, deveria ser lida por aqueles que “dizem conhecer muito bem a diplomática”, mas que apenas leram o capítulo Diplomática e Tipologia do livro da Bellotto.
Em 1802, Angelo Fumagalli procurando preencher o vazio deixado pelos diplomatistas italianos, publica Delle istituzioni diplomatiche, um tratado de diplomática italiano que começa a ser estruturado mais como um manual, contendo definições e os elementos para a crítica diplomática, pois, segundo o autor, embora Maffei tenha escrito uma bela obra, seu foco recaía mais sobre os elementos extrínsecos dos papiros do Egito. Mas o que nos leva a falar da obra de Fumagalli aqui é, novamente, a preocupação em descrever e caracterizar os Arquivos enquanto instituição que preserva e contém os diplomas, e com isso dedica uma seção do tratado aos arquivos e la maniera di ben disporne e cutodirne le carte, citando os arquivos dos imperadores gregos e romanos, assim como os da igreja, e os documentos ali dispostos.
Se as obras dos franceses e italianos são pouco discutidas dentro dos cursos de Arquivologia brasileiros, as obras dos autores alemães são quase inexistentes para a comunidade científica brasileira que estuda a Diplomática. Apesar da importância de autores como Ficker, Sickel (o grande responsável pela partição teórica do documento entre Texto e Protocolo) e Bresslau (autor do Manuale di Diplomatica per la Germania e l’Italia, que contém um estudo minucioso sobre a Diplomática nesses dois países, com uma história detalhada da disciplina e exemplos das guerras diplomáticas, além, é claro, do capítulo sobre Arquivos), para a constituição da Diplomática pós-Mabillon, pouco se fala, e pouco se estuda dessas obras.
Os conceitos-chave desses autores aparecem em obras contemporâneas apenas como releituras, que raramente se aprofundam no assunto, por não ser esse seu objetivo (a exemplo pode-se citar Diplomatics; new uses for an old science, de Duranti[1]). Essas obras, apesar de não anunciarem definições e conceitos e próprios, ou uma reflexão sobre as definições de outros autores, são usadas quase como material único e exclusivo para o ensinamento da Diplomática nos cursos de Arquivologia, privando o aluno de uma bibliografia muito mais vasta e rica de conceitos e definições que possibilitariam a ele uma reflexão e um conhecimento mais crítico e abrangente.
Essa formação rasa e empobrecida do profissional arquivista reflete a falta de preparo dos professores universitários, que aprendem o básico do básico com os professores mais experientes e “lidos” da área, e não vêem necessidade em estudar e aprofundar o assunto trazendo para as discussões em sala de aula os textos clássicos da Diplomática.
Infelizmente essa questão não é comum apenas à Diplomática, uma vez que os alunos de Arquivologia não têm a chance de discutir os clássicos da própria área como o Manual de Arranjo e Descrição de Arquivos (1898), ou A Manual of Archival Administration (1922) de Sir Hilary Jenkinson, ou Arquivos Modernos (1956) de T.R Schellenberg.
Com a globalização dos meios de busca e acesso aos livros e documentos – e aqui devemos agradecer ao google.books - nada é impossível para a pesquisa, pelo menos na nossa área. Todos os manuais de Diplomática que citei e todos os livros de Arquivologia podem ser acessados sem custo algum por qualquer cidadão interessado, de qualquer lugar do planeta. Mas novamente nos deparamos com outro problema: como ler esses livros, tratados, manuais, tão fundamentais para a nossa formação, se a maioria encontra-se em francês, inglês, italiano, alemão, espanhol, e até latim? Bom, aqui caímos, mais uma vez, na formação pobre e despreparada dos nossos professores, que passam em concursos para serem professores doutores, mas que raramente conseguem falar dois idiomas – e aqui eu incluo o seu. Na realidade, ele não é obrigado a falar e a ler em outro idioma, uma vez que alguns Programas de Pós-Graduação não exigem um segundo ou terceiro idioma nas primeiras provas de eliminação de candidatos, e oferecem depois uma prova estúpida de proficiência “instrumental”.
O que acontece é que, se pelo menos os professores de Arquivologia e Diplomática pudessem ler os clássicos da sua área, seus alunos estariam muito mais bem preparados teoricamente, e com isso, preparados também para a prática – palavra essa tão desejada pelos Arquivistas em formação.
Pra finalizar, gostaria de fazer mais um desabafo. Infelizmente as discussões teóricas sobre Arquivologia e Diplomática não encontram espaço nos Congressos e Encontros Brasileiros, que estão sempre repletos de “estudos-de-caso” empobrecendo o status científico da área. As discussões sobre a Diplomática encontram lugar em sessões paralelas em eventos sobre Arquivologia, e aqui, devo ressaltar “o mais do mesmo de sempre”. O mais do mesmo quer dizer: os mesmos professores que estavam lá há 60 anos, os mesmos assuntos, os mesmos casos, os mesmos problemas. Chamar sempre os mesmo professores, evocar sempre os mesmos assuntos, não significa dizer que estamos evocando uma diplomática clássica, que estamos lendo os clássicos, que estamos nos atualizando com eles. Significa dizer que não estamos dando espaço para o novo, que lê os clássicos, que conhece os clássicos e que aprende com eles.


[1] No entanto, não podemos desmerecer aqui o trabalho de Duranti, que apesar de não se aprofundar nas questões teóricas e epistemológicas da Diplomática – uma vez que essa não é sua intenção – merece seu mérito por trazer à tona as discussões sobre a Diplomática e seu uso pela Arquivologia, que estavam até então adormecidas, e limitadas ao continente europeu (como exemplo temos os trabalhos de Bruno Delmas na França e Paola Carucci na Itália).

Para ler mais:

ASSOCIAÇÃO dos Arquivistas Holandeses. Manual de arranjo e descrição de arquivos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1975.

BRESSLAU, Harry. Manuale di diplomatica per la Germania e l’Italia. Trad. Anna Maria Voci-Roth. Roma: Ministero per i beni culturali e ambientali, Ufficio centrale per i beni archivistici, 1998.

CARUCCI, Paola. Il documento contemporaneo: Diplomatica e criteri di edizione. Roma: La Nuova Italia Scientifica, 1987.

 DELMAS, Bruno. Manifesto for a contemporary diplomatics: from institutional documents to organic information. American Archivist, vol. 59 (fall), 1996, p. 438-452.

 DURANTI, Luciana. Diplomatica: usos nuevos para una antigua ciencia. Trad. Manuel Vázquez. Córdoba, 1995.

 FUMAGALLI, Angelo. Delle istituzioni diplomatiche. Milano: Dalla Stamperia e Fonderia al Genio Tipografico, 1802.

 JENKINSON, Hilary Sir. A manual of Archive Administration. Oxford: Oxford University Press, 1922.

 MAFFEI, Scipione. Istoria Diplomatica Che serve d’introduzione all’arte critica in tal materia. Con raccolta de’ Documenti non ancora divulgati, che rimangono in Papiro Egizio. Mantova, 1727.

SCHELLENBERG, Theodore Roosevelt. Arquivos Modernos: princípios e técnicas. Trad. Nilza Teixeira Soares. 2ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

TASSIN; TOUSTAIN, C.F. Nouveau Traité de diplomatique. Paris: Guillaume Deprez e Pierre-Guillaume Cavelier, Imprimeur e Librarie, 1750-1765.